Hoje acordei a lembrar-me dos dias infinitos passados naquele lugar de vida e de morte. Da sensação que tinha cada vez que entrava no quarto nº3 da enfermaria e olhava para aquelas 3 camas. Na primeira a pessoa de quem eu gostava. Na segunda uma jovem professora de matemática que tinha descoberto a leucemia nas primeiras análises de rotina da sua gravidez. Conseguia ler nos seus olhos a dor da doença e a ansiedade de não perder aquele bebé tão desejado. Na última cama junto á janela estava alguém de quem já não me lembro do rosto ou do nome. Recordo apenas que vivia longe de Lisboa e por esse motivo tinha muito poucas visitas. Lembro-me que durante o tempo que lá permaneceu todas as noites eu ia ajudar a dar o seu jantar. Não gostava que lhe dessem comida á boca, não se queria reconhecer tão dependente, mas ainda assim era preciso ajuda para ajeitar a cama, as almofadas, a mesa, abrir as caixinhas da comida e essencialmente incentivar a comer. Esperava que eu lhe dissesse que a comida tinha bom aspecto que cheirava bem, que devia ser boa e queria a sua opinião. Ela então sorria e comia. Dizia sempre que eu tinha um olhar muito doce e que se lembrava da sua sobrinha. Numa tarde de fds quando me viu entrar chamou logo para junto da sua cama com um ar de entusiasmo, de menina pequena. A irmã tinha ido fazer uma visita e ofereceu um livro que já queria ler há muitos meses. Desde esse dia mudamos o ritual das semanas seguintes. Eu chegava e ia sentar-me na cadeira ao fundo da cama e então ela contava-me as conversas com Deus. Lembro-me bem de pensar que o seu fim se aproximava, havia alturas em que a leitura do livro se confundia com as suas próprias frases. Nem sempre percebia quando era ela a falar do que tinha lido no capitulo anterior ou se aquela conversa com Deus era pessoal. Soube que um dia tinha que ler aquele livro. Ainda não o comprei, talvez porque sempre que penso nele me incomoda o facto de não saber se ela sobreviveu á doença. Quando a minha familiar faleceu fui fazer a despedida das restantes senhoras que me pediram para voltar e as visitar de tempos a tempos, mas não consegui. Entrar naquela enfermaria fazia recordar os longos meses de impotência que lá vivi, que um dia aquele local passou a ser a minha 2º casa, que já sabia todos os nomes das enfermeiras, auxiliares e e médicos que lá estavam. Lembrava-me também que ela já não estava entre nós... Um dia vou ler este livro e sei que vou desejar que a senhora da cama número 3 esteja viva e que todas aquelas conversas que tinha comigo tenham sido apenas sobre as dúvidas do personagem. Um dia...
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